Certas palavras mudam completamente de sentido com o tempo. Se dissermos, por exemplo, que alguém é formidável, estamos dizendo que esta pessoa é incrível, maravilhosa. Certamente se dissermos numa igreja que a obra de Deus é formidável, seremos entendidos como alguém que exalta o nome do Senhor apropriadamente. Afinal, “formidável” é algo, enfim, formidável. Mas, inicialmente, “formidável” é algo que dá medo, assusta.
“Galera” é outra palavra com sentido mudado. Hoje significando ajuntamento de pessoas, galera inicialmente era o navio movido a remada de escravos, coitados.
Aliás, “coitado” também teve seu sentido alterado, de um significado chegando às raias do pornográfico (significava que alguém ficou “derrubado” depois de um período intenso de coito, ou seja, sexo) para algo tão pudico que pode ser dito na mesa do café da manhã junto com as crianças.
“Evangélico” é uma palavra que foi mudada, e para pior. Quando me converti, há 24 anos atrás, o evangélico era alguém mais austero, não muito bem compreendido em uma sociedade de maioria católica, pois insistia em não cultuar santos e imagens. Era um sujeito honesto e que levava a sério a palavra empenhada. Evangélico era aquele que respeitava a família (sua e alheia), que não aceitava leviandades com o nome de Deus, e que se destacava nos estudos e no trabalho. É claro que havia aberrações, mas eram as exceções que confirmavam a regra.
Hoje viramos motivo de piada. Evangélico, hoje, é o sujeito que fala que ama a Deus, mas que vira um animal desembestado na internet saindo em defesa de seus ídolos. Sim, evangélico hoje é idólatra. Mesmo que diga que não reverencia santos, é idólatra porque reverencia pecadores que fazem do discurso religioso seu comércio lucrativo.
Evangélico é aquele que gosta de música brega, bem brega, capaz de corar Jane&Herondy, mas com letras com termos herméticos que só os iniciados compreendem. Evangélico hoje é aquele que não se preocupa com santidade da família, mas faz Terapia do Amor; não se importa tanto assim com trabalho, mas sonha com o toque mágico da unção da prosperidade, versão do sonho da mega-sena para aqueles que não jogam; não procura ser agente transformador da sociedade, antes se tornando um feliz cooptado por ela; não se empenha por estudar a Palavra, mas almeja uma revelação.
Se antes evangélico se alegrava quando a Palavra de Cristo brilhava, hoje se alegra por seu artista gospel preferido estar na trilha sonora da novela. Ainda que nem todos os evangélicos sejam assim, o mau uso da palavra, através do ruidoso péssimo testemunho de alguns, atinge a todos.
É hora de retomarmos outra palavra usada para nos identificar. Devemos retomar nosso não-conformismo, nossa santa indignação, e tirar a poeira da palavra “protestante”. Resgatar seu sentido original na história, que era o de protestar contra a arbitrariedade do imperador Carlos, da Alemanha, que queria empurrar, goela abaixo, um cristianismo de rito romano, abandonando os avanços alcançados pelo movimento reformista iniciado por Lutero.
Protestante é aquele que procura viver a vida de acordo com a Palavra, compreendida através da lente das “cinco solas” (só a graça, só a fé, só as Escrituras, só Cristo, glória só a Deus), descartando acréscimos.
Protestante é aquele que entende que a soberania de Deus abarca também o Seu amor, e não é algo excludente. Protestante é aquele que entende que o seu primeiro mandato é o de redimir a cultura, para que possa refletir o caráter bondoso de Deus, que presenteou a humanidade com tanta gente de talento.
Protestante é aquele que entende que revelações extra-bíblicas são forjadas na ante-sala de belzebu, e que, por isso mesmo, precisa conhecer a fundo a fonte original, a Bíblia.
Enfim, protestante é aquele que não se deixa seduzir com o canto da sereia do mundo, antes procura amoldar-se à vontade de Deus. Portanto, prefiro ser esta metamorfose ambulante chamada de “protestante” a ser chamado de “evangélico”.
Quero que minha vida glorifique a Deus, e não que envergonhe Seu nome. Quero ser alguém que traga a boa notícia de Jesus, e não alguém que aprisione outros pelo ferrolho desta religiosidade estéril. Quero ser portador da paz. Não quero ser “formidável”.
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